Em Portugal, a arte de mentir é uma disciplina muito evoluída e com várias nuances ou escalas de valor.
Os britânicos podem ter muitos defeitos, mas têm como uma das suas principais qualidades a de levarem o serviço público muito a sério. Escrevo esta crónica e a sra. Truss já não é primeira-ministra. Esta senhora era o que os ingleses chamam um sitting duck, um alvo fácil que estava à espera de levar um tiro. Eu prefiro usar a figura de estilo brasileira que, em meu entender, descreve melhor a situação: “Morreu e esqueceu de deitar.”
A seriedade britânica na política fez com que um primeiro-ministro como Boris Johnson se demitisse por ter mentido ao Parlamento. O caso em questão foram as festas na altura do confinamento. Seria um facto inédito que um primeiro-ministro português se demitisse por mentir ao Parlamento. Se aplicássemos este critério de demitir um político quando mente no Parlamento, nos últimos anos teríamos tido um primeiro-ministro diferente a cada semana.
A bem da nossa estabilidade política, os nossos critérios de exigência são bastante mais latos. Pensando bem, desconfio que não temos critérios morais nenhuns. Somos o país onde mentir nem é tão malvisto assim; afinal, já elegemos primeiros-ministros acusados de corrupção. Esta nossa prática de conviver com a mentira faz com que essa seja uma arte bastante desenvolvida e apreciada pelos eleitores. Em Portugal, a arte de mentir é uma disciplina muito evoluída e com várias nuances ou escalas de valor.
A primeira escala é a “economia de verdade”. Aqui, o político não mente, mas omite factos que poderiam alterar a mensagem que ele quer transmitir. Temos agora o exemplo do “aumento das pensões”. O dr. Costa afirma que vai aumentar as pensões. É uma verdade, mas é uma economia de verdade, pois o que ele não diz é que a inflação vai comer uma grande parte desse aumento e, na prática, o pensionista vai ficar com menos rendimento do que tem agora. Mas ninguém o pode acusar de mentir.
A segunda escala é a “inverdade”. Eis uma palavra, inverdade, que me parece uma invenção recente. Não me lembro de ouvir este termo há uns anos, mas é uma adição sofisticada e que substitui, nalguns casos, a utilização da palavra mentira. Uma inverdade, para qualquer um, é uma mentira, mas, para um político, é uma divergência da verdade. Parece a mesma coisa, mas há uma grande diferença, embora nenhum de nós, não políticos, consiga identificá-la.
A terceira escala é a “mentira pura”, que, na verdade, também não tem qualquer consequência, pois o desmentir de uma mentira requer que os cidadãos sejam agentes informados, facto que não se verifica em Portugal. O cidadão aceita que o político minta e desculpa todas as mentiras. No fundo, ninguém espera que a verdade seja uma qualidade comum entre os políticos.
Há ainda a categoria das grandes mentiras sistémicas, nas quais todos os eleitores acreditam, embora a prática política demonstre o contrário. São mentiras normalmente usadas em campanhas eleitorais e que, na verdade, são mitos nunca comprovados. São exemplo disso a ideia de que a direita reduz o tamanho dos governos ou que a esquerda é mais solidária com os desfavorecidos. São parte de uma narrativa que os eleitores de cada lado apreciam, embora saibam que dificilmente corresponde à verdade.
Um político consegue criar uma realidade alternativa que sabe, à partida, ser mentira, mas que, à custa de repeti-la muitas vezes, começa ele próprio a acreditar. Creio que Bill Clinton acreditasse na sua famosa frase de que não tinha tido relações sexuais com a sua assistente. De tanto contar essa mentira, ela acabou por se tornar uma verdade na sua mente.
Quando questionado se alguma vez tinha dito uma mentira em público, um político responde “acredito que não”. É uma maneira de não se comprometer caso surjam provas de que mentiu. Mas o curioso é que a própria frase já é uma mentira em si própria, deixando a questão de ser mentiroso para um plano de acreditar ou não. Só um político para usar a fé numa questão de carácter simples.
A grande questão é se os eleitores se importam com essas mentiras. É mais do que óbvio que o governo Costa é useiro e vezeiro em falsas promessas. Mas, ao fim de seis anos de “economias de verdade” e de mentiras descaradas, o Partido Socialista conseguiu uma maioria absoluta. Contra factos, não há argumentos. O eleitor não se importa com mentiras, pois ele próprio também não tem um comportamento cívico exemplar. Quem consigo próprio não é exigente também não o será com os seus representantes políticos.
Ao fim e ao cabo, a prática política resume-se àquela máxima de “ se não consegues convencê-los, confunde-os”.