Cresci com algumas poucas certezas. Uma delas é que uma pandemia seria inimaginável, pois a ciência teria previsto os cenários mais apocalípticos das doenças. A outra certeza é que a guerra era uma coisa de terceiro mundo e que tal cenário seria inimaginável na Europa do século XXI.
A pandemia e a guerra vieram recordar-nos o quão frágil é a nossa condição. O progresso não é linear na sua subida, pode haver retrocessos. É muito frágil o que construímos e esfumou-se em frente dos nossos olhos, perante a nossa incredulidade.
Na presença da pandemia, escondemo-nos em casa e tentámos prolongar esse status, convencidos de que assim estaríamos seguros. Escondemo-nos do perigo, na convicção de que quatro paredes bastariam para garantir a nossa segurança. Aqueles de nós que puderam trancar-se em casa não se preocuparam com os que tinham de continuar na rua, pois a sociedade não podia parar e exigia que os supermercados, entregas e outros serviços continuassem a funcionar, enquanto nos escondíamos num armário, numa cave.
As imagens da guerra vieram abalar ainda mais essa falsa sensação de tranquilidade. Ao ver as imagens de bairros ucranianos, como os nossos, a serem bombardeados, perdemos a sensação de que estávamos seguros trancados em nossas casas. O vírus entra pela porta, mas o míssil entra por qualquer lado.
Vivíamos numa falsa sensação de progresso contínuo e de paz perpétua. Uma utopia em que nos esquecemos de que o mundo não é amigável. Como iludidos nessa utopia, quisemos acreditar que o homem é intrinsecamente bom e que a razão acalmaria qualquer tentação violenta.
Nunca fui muito adepto do “bom selvagem”. O homem não é naturalmente bom. O homem é naturalmente egoísta e actua nos seus medos e receios. A sociedade ocidental deixou-se adormecer, encantada com uma narrativa romântica de Rousseau e do seu mundo desejável, mas utópico. Porém, por detrás dessa aparente fé num mundo melhor, nunca deixámos de ser a sociedade egoísta que sempre fomos. Emocionámo-nos com a pobreza noutros continentes, mas nunca deixámos que isso afectasse o nosso bem-estar material. Projectávamos a imagem de sermos uma sociedade altruísta e preocupada com a justiça social, desde que isso não pusesse em causa os nossos interesses pessoais.
Infelizmente, a pandemia e a guerra trouxeram-nos o choque do realismo hobbesiano. Ficou evidente perante todos que o homem se preocupa primeiramente com os seus próprios interesses e em garantir que subjuga em vez de ser subjugado.
Se uma guerra na Europa, em 2022, não nos deixa dúvidas de que o progresso não domou os nossos instintos mais reprováveis, também a pandemia revelou o pior da natureza humana. Poucas situações enquadram tão bem essa falha da nossa natureza como os inúmeros casos de pessoas que abusaram do seu poder para passarem à frente nas vacinas e assim garantirem a sua própria segurança. As pessoas são altruístas e bondosas quando as suas próprias necessidades estão satisfeitas. O caso das vacinas ilustra bem que o homem não se importa de viver em vergonha perpétua se puder garantir a sua própria sobrevivência.
No caso presente da guerra, somos muito solidários, mas são discutíveis os sacrifícios a que estamos dispostos enquanto tivermos a falsa sensação de que é apenas na longínqua Ucrânia. Doamos um pacote de arroz para os refugiados e vamos para casa com a consciência tranquila e a exigir aos nossos governantes que mantenham a realidade da guerra o mais distante possível.
Aqueles que, como eu, viveram largos períodos de paz e progresso material esquecem-se de que a competição, os conflitos e a guerra são partes integrantes da sociedade humana. É desejável? Não. Mas, a não ser que vivamos num estado de permanente negação, temos de aceitar que essa é a realidade.
Prefiro sempre um realista a um iludido.