Teve início, em 2005, uma das mais profundas reformas do serviço público de saúde em Portugal. Fruto de uma ampla discussão e planeamento, o resultado final foi a criação de Agrupamentos de Centros de Saúde, divididos em unidades funcionais. Entre as novas unidades criadas, há uma que regularmente surge como alvo de combate ideológico, demasiadas vezes desajustado da realidade.
As Unidades de Saúde Familiar (USF) caracterizam-se por prestarem cuidados de saúde individuais e familiares, assentes em equipas multidisciplinares que procuram potenciar as suas capacidades e competências. Pretende-se que a maior autonomia e responsabilização pelos resultados alcançados criem as condições para que as equipas sejam mais estáveis e coesas. Assim, seria possível melhorar a acessibilidade e a qualidade dos cuidados prestados.
As USF têm três modelos. Simplificando, o modelo A corresponde à fase de aprendizagem. A equipa é integrada no modelo, ganha experiência nas novas rotinas e organização e atinge os indicadores necessários para poder ser promovida a modelo B, onde já há lugar a pagamento de incentivos institucionais, de acordo com os objetivos contratualizados.
O modelo das USF B funciona. Produz maior satisfação profissional, cria equipas mais estáveis e coesas, indo ao encontro das expectativas do cidadão. Temos a fórmula do que funciona, precisamos apenas de condições e não de criar entraves no sistema. Tornar mais céleres e descentralizadas as contratações de profissionais, melhorando carreiras e salários para retê-los. Sem esquecer o necessário investimento nas condições físicas das unidades.
O Despacho nº. 24.101/2007 define o modelo C das USF como experimental e supletivo. O caráter supletivo da proposta proíbe – ou, pelo menos, dificulta bastante – a migração de profissionais de saúde do Serviço Nacional de Saúde para o setor privado ou social, de forma a inaugurar este tipo de unidades.
Sabendo que o principal problema é a carência de médicos e enfermeiros nos cuidados de saúde primários, a adoção do modelo C teria como consequência a drenagem dos poucos recursos humanos, materiais e financeiros dos cuidados de saúde primários para este novo modelo. Há pessoas sem equipa de família completa em determinada localidade? Com o modelo C, estas pessoas poderão ter acesso a médico de família, mas às custas de pessoas da localidade vizinha, que perderão o acesso.
A solução é investir no que funciona. A prioridade, sem dúvida, só pode ser apoiar a criação de mais USF modelo B, melhorando a proximidade com os profissionais de saúde, facilitar a mobilidade de profissionais entre unidades, de forma a gerar bem-estar e equilíbrio na oferta de cuidados de saúde, acompanhar e ser um parceiro na melhoria contínua dos cuidados prestados nas USF e dotar as unidades de condições físicas e materiais necessárias para o exercício profissional seguro.
Das várias personalidades que recentemente se pronunciaram sobre este tema, foi sem grande surpresa que assisti ao atual bastonário da Ordem dos Médicos a elencar o modelo C como prioridade política para os cuidados de saúde primários. O seu curto mandato tem sido caraterizado por um reforço do corporativismo e de uma obsoleta perspetiva medicocêntrica.
Este modelo significa um retrocesso na forma como as profissões se relacionam e distribuem tarefas. O foco deve sempre estar na competência e no cidadão. Em vez de planearmos como organizar a força de trabalho para o futuro, estamos condenados a reeditar modelos com 40 anos. Os cuidados de saúde primários devem ser a base de qualquer sistema de saúde. É invisível, mas inegavelmente mais barato e com menos sofrimento, prevenir doenças e promover a saúde do que tratar ou gerir doenças.
O futuro que desejo? Uma saúde de proximidade, centrada no cidadão, integrada com outros níveis de cuidados e com profissionais motivados. O caminho é claro e já o descobrimos. Falta caminhar com confiança e investir no serviço público de saúde.