Há momentos das nossas vidas em que olhamos para o nosso presente e nos questionamos se estaremos a ser fiéis àquilo que decidimos ser na nossa juventude. São aqueles momentos em que paramos, saímos da circunstância e nos observamos de fora, tentando perceber aquilo em que nos tornámos. Essa visão exterior de nós próprios raramente nos é lisonjeira. Somos sempre os nossos críticos mais implacáveis.
A nossa adolescência define-nos para o resto da vida e representa o seu último momento íntegro. Depois vêm os anos da capitulação à sociedade a que somos obrigados quando nos tornamos jovens adultos. “Welcome to the machine.” Aceitamos essa cedência dos nossos sonhos pois consideramos que será temporária. A necessidade de nos integrarmos no trabalho e nas novas obrigações familiares que vamos criando abafa o ideal das nossas adolescências. O sistema integra-nos através da constante pressão dos que nos rodeiam e, quando damos por isso, também nós estamos a pressionar outros para que ajam de acordo com o que a sociedade espera deles. É uma roda trituradora em que somos vítimas e, ao mesmo tempo, algozes.
Alguns resistem. Um desses é o Miguel Sousa Tavares, que resiste a ser moldado ao politicamente correcto e continua a celebrar alguns prazeres da vida e da liberdade. O título de um dos seus livros, “Não te Deixarei Morrer, David Crockett”, simboliza muito essa recordação das promessas que fizemos a nós próprios nas nossas adolescências. Nas palavras do autor, Crockett era “uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé…”.
A vida, não importa a idade, deve ser uma constante viagem de explorações e descobertas. Muitos de nós deixámos morrer o nosso David Crockett, pois perdemos a vontade de explorar novas fronteiras e de viver a vida em liberdade. Entrámos no nosso “Forte Álamo” e deixámo-nos matar.
Não tive David Crockett como um dos heróis da minha juventude, as minhas referências eram mais rock’n’roll. O David Crockett da minha adolescência era o Sid Vicious dos Sex Pistols, o baixista que viveu de acordo com aquilo em que acreditava e que morreu sem fazer cedências ao sistema. Cresci a ouvir e a acreditar que “There Is No Future” e a identificar-me com essa visão decadente e niilista da vida. Desprezei Johnny Rotten por se ter aburguesado e vendido ao sistema.
Evoluí de Sid Vicious para Lou Reed, pois passei a achar que Deus estava na mistura das várias substâncias. “I have made a very big decision, I’m going to try to nullify my life.” Sinto que foi a minha última tentativa de resistir a ser engolido e moldado pelo sistema. Mas mesmo o Lou Reed um dia ganhou juízo e descobriu que um “Perfect Day” pode ser simplesmente um dia num parque ao sol. Foi a altura de deixar o “Dirty Boulevard”.
Entrei, pois, na minha fase “viva la vida” mas, graças a Deus, não foi uma fase Coldplay, o que seria a decadência da decadência. Gosto de pensar que foi uma fase The Cure do género “Friday I’m In Love” mas, na verdade, foi mais tipo The Smiths com “Everyday is like Sunday, everyday is silent and grey”. A vida é bela, mas convém manter uma perspectiva “silent and grey”.
Recentemente, dei por mim em modo “Comfortably Numb”, num jantar burguês, numa mesa em que se comentavam compras e lojas, e lembrei-me do meu saudoso amigo Sid Vicious. Gosto de pensar que não deixei o Vicious morrer, mas as evidências de que fui engolido pelo sistema são mais do que óbvias. Só me apetecia voltar aos Sex Pistols, partir umas montras e entrar em modo “No Feelings” (“I’ve no feeling for nobody else, except for myself”).
Sinto falta da vontade de partir os dentes a um burguês, mas receio ter-me tornado esse mesmo burguês. E não me apetece gastar mais dinheiro em dentistas por ter partido os dentes a mim próprio.