Como nos tempos de Thomaz, todos sabiam que o regime estava defunto, só que ainda não se tinha deitado.
Américo Thomaz adorava um bom banho de multidão. Chegava aos eventos no seu imponente Rolls-Royce presidencial, todo negro e reluzente, para que a populaça sentisse o peso da autoridade. O Rolls parava, o Jarbas corria a abrir a porta e de dentro do carro saía o almirante, impecável, todo de branco resplandecente, no seu uniforme de marujo medalhado. O povo acorria em grande número, delirava e aplaudia freneticamente.
O nosso bom povo adora uma autoridade. Um mês antes do 25 de Abril aplaudiu prolongada e espontaneamente a presença de Marcello Caetano num jogo de futebol em Alvalade. O mesmo povo que, um mês depois, dava vivas à revolução e às novas autoridades. Somos o povo graxista que Bordalo tão bem representou na figura do popular que faz o manguito (faz um manguito, mas é quando a autoridade já está de costas).
O Presidente Américo Thomaz era conhecido pelo “Corta-fitas”, pois não perdia uma inauguração. Qualquer obra pública por inaugurar e lá ia o almirante, todo contente. Thomaz ia a tantos lugares que uma vez declarou que “é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive”.
O nosso actual Presidente também se pela por um banho de multidão. Desconfio que também deveria adorar cortar umas fitas mas, por azar, saiu-lhe o António Costa como primeiro-ministro e, como já todos sabemos, este governo vai ficar na História como o governo que, ao fim de sete anos, não tem uma só obra para inaugurar. Para grande desgosto do nosso actual corta-fitas, que tem de se limitar a tirar selfies.
Américo Thomaz e Marcello Caetano confundiam esse graxismo natural da arraia-miúda com apreço pelo governo da altura. O nosso povo gosta de ser conduzido e aplaude quem quer que tenha a chibata na mão. O nosso actual Presidente também confunde amor à autoridade com popularidade.
Aquando do 25 de Abril houve a preocupação de prender Marcello Caetano e ninguém se preocupou muito com Américo Thomaz. Consta que enviaram um carro com dois guardas da Brigada de Trânsito para o prender. Era uma figura sem importância. O suposto líder da ala ultraconservadora era, afinal, um tigre de papel. O Presidente que era recebido triunfalmente pela população acabou sozinho e esquecido.
Façamos um comparativo entre Thomaz e Marcelo. Thomaz era um ultraconservador e tinha o problema de ter um primeiro-ministro reformista. Já Marcelo, cujo posicionamento desconhecemos, tem o problema de ter um primeiro-ministro que é alérgico a reformas.
Thomaz adorava, em qualquer ocasião, fazer longos discursos, para desespero de quem o acompanhava. Também Marcelo, igualmente palavroso, não pode ver um microfone à frente que tomem lá um comentário. De manhã comenta a remodelação ministerial, à tarde comenta o custo do altar e à hora do jantar comenta o “Big Brother”.
Thomaz demorou a exonerar Salazar, tal o medo que tinha do ditador. Marcelo anda a ameaçar acabar com este governo, mas nos últimos sete anos tem sido o grande facilitador do governo Costa.
Thomaz tinha fama de ser pouco inteligente, mas diz quem o conheceu que era inteligente. Já Marcelo tem fama de ser inteligente.
Thomaz foi o Presidente do fim do regime. Um regime em que poucos já acreditavam e que acabou por cair ao mínimo abalo. O nosso regime actual também caminha para o seu fim. Atolado em corrupção, com uma justiça ineficaz e com o partido governamental infiltrado em todos os níveis do Estado. Já pouco resta a este regime em termos de credibilidade.
Como nos tempos de Thomaz, todos sabiam que o regime estava defunto, só que ainda não se tinha deitado.
Caminhamos para um beco sem saída. A falta de vontade de mudar e a normalização deste estado de coisas será o combustível de quem se apresentar como salvador milagroso. A corrupção alimenta o populismo, mas será o imobilismo a derrotar este regime. Foi a aversão às reformas que acabou por derrubar o antigo regime. E quando o povo perceber que tem de bajular um novo chefe, provavelmente um populista, nessa altura já teremos passado o point of no return.
Cada fim de regime tem o Américo Thomaz que merece. A nós calhou-nos o professor. Desconfio que nem o carro da Brigada de Trânsito se vão dar ao trabalho de enviar.