Assisti, como é meu hábito, à mensagem de Natal de sua majestade britânica. Este ano, devido ao desaparecimento do príncipe Filipe, duque de Edimburgo, a mensagem foi mais triste e sentida, sem que, no entanto, sua majestade a Rainha tenha entrado em lamechices sentimentais. Falou-se do assunto, mas manteve-se a compostura. Este é um dos eventos mais dignos a que se pode almejar assistir. Tudo transmite dignidade. O texto, o cenário, a banda militar que arranca com o hino, e o coro no fim, já mais relaxed, mas igualmente de alto nível. Os ingleses sabem fazer estas coisas.
Admiro muito o Reino Unido, não só por lá ter vivido clandestinamente uns anos da minha vida, a fugir do Home Office, mas também pelas enormes cultura e história desse povo. Neste momento fica bem falar mal dos britânicos. Devido ao Brexit, qualquer aspirante a comentador diz cobras e lagartos do caminho que esse povo escolheu. Há quase uma vontade de auto-satisfação secreta de que tudo corra mal aos ingleses.
É claro que o Brexit será um caminho difícil e de desenlace incerto. É preciso refazer uma relação com todos os países que até agora se fazia através da União Europeia. E o caminho para essa nova relação será difícil e tortuoso. Qual casal recém-separado, há acusações de parte a parte e pouca vontade de compreender o caminho que o antigo parceiro escolheu. Mas, condenados ao entendimento, acredito que num futuro próximo haverá um novo compromisso. Com o previsível afastamento de Boris Johnson nas próximas eleições, um novo governo trabalhista encontrará um entendimento com a União Europeia. Será um “Brexit-in” que agradará aos que querem manter uma distância higiénica dos burocratas europeus mas, ao mesmo tempo, reconhecem algumas das vantagens do mercado comum.
Nunca tive uma opinião firme sobre o Brexit. Sempre achei que à partida haveria muito mais a perder do que a ganhar. E não gosto de um certo cheiro a xenofobia que transpira de alguns apoiantes desta causa.
A Inglaterra ganhou muito com a multiculturalidade e não há um reconhecimento disso. Mas, por outro lado, percebo que os britânicos não queiram fazer parte de uma superestrutura burocrática de cariz antidemocrático. Para alguns povos mais indisciplinados, a União Europeia é recomendável, pois ajuda-os a manterem-se na linha, especialmente no campo orçamental. Mas outros há que não concordaram com o caminho centralizador tomado em anos recentes e os britânicos desconfiavam do excessivo poder que a Alemanha foi acumulando.
Ficamos todos a perder sem a presença dos britânicos. Recordo-vos a dívida de gratidão que os povos continentais têm para com eles. Lutaram contra Napoleão e contra a Alemanha na Primeira e Segunda guerras mundiais, impedindo que a Europa continental fosse dominada por essas potências. Pela sua natureza insular, sempre que pressentiram que nova tirania se avizinhava, recuaram para depois poderem lutar. Os britânicos, com todos os seus defeitos, nunca se sujeitaram às tiranias e foram sempre dos primeiros a apresentar-se em qualquer luta e em qualquer lugar. Some talk the talk, mas os britânicos walk the walk.
Recordo-me sempre de Mr. Jones, um porteiro de um edifício londrino onde trabalhei e que todas as manhãs me cumprimentava com um “Bloody foreigner” enquanto bebia o seu chá numa caneca com uma figura da Rainha. Eu retribuía o cumprimento com um “Bloody imperialist” e acabávamos os dois a beber um chá, juntos, ao fim do dia.
Nas nossas conversas houve sempre um assunto que provava que eu era apenas um selvagem continental. Eu punha o leite antes do chá. Uma falha grave na minha Britishness, mas que Mr. Jones perdoava com um olhar condescendente. Afinal, eu era apenas um bloody foreigner.