Como homem de esquerda que sou, de vez em quando ressinto-me de escrever neste jornal pró-NATO. Esta semana é um desses casos, pois imagino que, nesta edição, todos os meus colegas cronistas estarão a condenar, sem reservas, a invasão russa, que na verdade não é uma invasão, mas uma “intervenção militar” para “libertar” a Ucrânia, como tão bem explicou o ministro Serguei Lavrov.

Não têm sido dias fáceis para esquerdistas como eu, enrolados que estamos a tentar arranjar justificações. Quando são os imperialistas americanos a invadir, as palavras de ordem de condenação são logo definidas de início e todos as repetimos em uníssono até à exaustão. É como a unicidade sindical em versão de protesto.

Dada a confusão que reina pelas hostes, resolvi explicar aqui as várias tendências e o posicionamento que cada tribo deve tomar perante a “intervenção militar”. Pelo menos neste canto do jornal há um safe space de esquerda que percebe que a Ucrânia provocou a Rússia, tal como uma vítima de violação não é vítima pois envergava provocadora mini-saia. O principal argumento da defesa é que “estava a pedi-las”, mas que pode ser enunciado de várias maneiras conforme se é de esquerda ou de extrema-esquerda. Noutros casos, seria um argumento machista, mas aqui pode utilizar-se. Afinal de contas, a esquerda está sempre do “lado certo da História”.

Eu sou mais esquerda-Robles, que se distingue da esquerda-caviar pois é uma esquerda empreendedora em alguns negócios imobiliários imorais. Normalmente tem uma coluna num jornal diário, onde escreve textos com chavões destinados a levantar os aplausos dos esquerdistas, ainda anónimos, que buscam pedigree canhoto para serem aceites pela tribo. A esquerda-Robles escreve textos de argumentação embrulhada, tentando justificar a intervenção com argumentos básicos como “a Ucrânia não era uma verdadeira democracia”. São os reis do “sim, mas…”.

Já a esquerda-caviar, cuja versão nacional é a esquerda-Lux, distingue-se da esquerda-Robles pois nunca foi empreendedora, sendo constituída, na maioria, por investigadores das ciências sociais e intelectuais bolsa-dependentes. Na questão ucraniana destilam ódio aos EUA, mas não tanto à UE, pois sonham com tacho em Bruxelas.

Já a esquerda-whatabout passou a semana a lembrar que não nos indignámos com igual veemência nos casos da Síria ou do Iémen. Sem argumentos para justificar a invasão russa, passam ao whataboutismo e recordam invasões do imperialismo americano. Vivem no Twitter sob o cobarde anonimato de perfis falsos.

Quanto à esquerda-tacho, que só é de esquerda para mamar na teta do Estado (como sabemos, o Estado é da esquerda), a sua primeira reacção foi a de se indignar com a guerra e esquecer-se do histórico guião canhoto de apoiar quem está contra os americanos. Daqui a uns tempos estarão numa manifestação qualquer pela paz e este breve e irreflectido desvio “natoísta” será esquecido.

Resta a esquerda-Pavlov, que assim que ouve a palavra NATO começa a ladrar. Tão alto que não ouve o desespero das vítimas no meio da guerra. Esta esquerda ainda estava na ressaca das celebrações da derrota americana no Afeganistão e foi surpreendida sem roteiro ideológico. No fundo, gosta do sr. Putin, pois ainda sonha com a restauração do império soviético, mas vê-se numa posição difícil, dado que há repressão dos manifestantes na Rússia e fica mal não condenar esses abusos.

E não podemos esquecer-nos da esquerda que padece da conhecida patologia da coluna vertebral, a “coluna elástica”, e que anda a dar mortais para trás desde 1939. Condenava os nazis até os soviéticos assinarem o pacto Molotov-Ribbentrop, a partir do qual os nazis não eram tão maus assim. Tiveram de exercer a difícil arte do contorcionismo ideológico e, desde aí, nunca mais perderam o hábito de explicar o inexplicável. As suas piruetas acrobáticas para justificar os seus apoios internacionais e as suas mudanças de opinião conforme Moscovo mandava são atracção de craveira internacional. No caso da Ucrânia, começaram por “compreender” as razões e, agora, encontram-se numa situação complicada. No entanto, assim que passar algum tempo e haja paz, voltarão a afirmar a sua natural superioridade moral.