“A justiça deve prevalecer, mesmo que daí resulte o desaparecimento de todo o canalha do mundo”.
Tivesse sido André Ventura a escrever estas palavras, ao invés de Immanuel Kant, não as teríamos enquanto defensoras da oposição à recusa de direitos de outrem, mas sim enquanto seguidoras de uma simplista ótica de Fiat justitia, et pereat mundus – faça-se justiça, nem que o mundo acabe.
A visão de justiça do Chega exige o primado moral da autorresponsabilididade enquanto pressuposto da justiça e coesão social e culpa a “falência da justiça” na ausência de certas predisposições morais e cívicas do regime – vulgo, cumpra-se a lei, desde que esta seja ética e segundo a tradição judaico-cristã e greco-romana. Parece, então, que “justiça” definir-se-ia, simplesmente, nas consequências das ações dos cidadãos (“canalhas” ou não), quando estes adiram (ou não) à predisposição moral e cívica pretendida: um valor frio, alegadamente moral, mas sem demais considerações éticas.
Esta falha na sinalização das nuances da noção de justiça numa sociedade é representativa da situação do seu partido, uma manifestação da sua ineptidão para ver os vários tons entre o preto e o branco, que por si só representa um enorme perigo para a sociedade civil portuguesa – é contribuir ativa e diretamente para a polarização política em Portugal. Reside aqui o maior perigo, quando se junta à maioria silenciosa uma minoria barulhenta, consideravelmente mais participativa e reivindicativa.
Quando o Chega diz que o poder estabelecido só engana o povo, não o faz com plena consciência de como extinguir o fogo que ateou. E se logo o povo lhes cobraria todas as promessas, o novo Estado não faria melhor do que o Estado antigo. O Chega só conseguiria ser poder num sistema unipartidário e sem oposição e num sistema multipartidário está condenado a ser oposição, lutando paradoxalmente contra as instituições que habita. O Chega não poderá possivelmente ser um partido antissistema quando ele próprio necessita dele para sobreviver, demonizando a atual classe política, com oito dos seus doze deputados com experiência no ramo.
O seu programa político está repleto de propostas vagas, ocas e enganadoras, sem qualquer tipo de continuidade, seja na vertente económica, da segurança ou da imigração, onde procura fortalecer a ostracização de pessoas que, no seu conjunto, são (em média) mais educadas que a população portuguesa, trabalham mais do que a população portuguesa e contribuem mais para a Segurança Social do que dela recebem, contrariando todas as narrativas apesar das extremas dificuldades.
Do ponto de vista moral, é errado; do ponto de vista político, é condenável; do ponto de vista económico, de um partido que se autointitula como liberal e como defensor do mercado livre, é incongruente. Acima de tudo, do ponto de vista cultural, é uma afronta a um povo de imigração e que, ele próprio, é uma amálgama de herança judaico-cristã, sim, mas também pagã, lusitana, árabe, ibérica, africana. Ao expor problemas, mas não a sua solução, fica implícita a alternativa: fazer do partido antissistema parte do governo e, consequente e paradoxalmente, parte integral do sistema que tanto abomina num ângulo quase messiânico.
A atitude conflituosa do Chega para com o regime em vigor é imperdoável não pelas críticas, mas pela hipocrisia e pela ilusão da verdade. Baseando a retórica política em opiniões, ao invés de verdades, subverte os próprios princípios da democracia representativa e a sua validade – aliando-se à imagem do povo, deixam de servi-lo, fazendo desta aliança uma farsa traiçoeira, cujo único objetivo é a demarcação entre a classe popular e a classe política.
Viver num mundo a preto e branco não é experienciá-lo verdadeiramente: o político lida com a verdade e a verdade não é binária. Seres humanos são demasiado complexos para ser reduzidos a uma categoria; a esse facto empírico nunca importará o quanto possam incitar à divisão da sociedade portuguesa, justificada hipocritamente por símbolos de união. O caminho a seguir nunca poderá ser um “consenso” entre esta direita e a restante direita democrática portuguesa, porque a discussão de ideias políticas terá sempre de se basear em verdades e não em opiniões. Com senso.