Os desafios no novo enquadramento da Guiné-Bissau

É perante esta crónica de violências passadas que se tem de equacionar a etapa constitucional aberta pelas eleições de junho. Com os poderes do Parlamento e do governo bem firmes sob a direção de Simões Pereira, Sissoco Embaló não tem armas constitucionais para entravar a ação do governo.

Nas eleições parlamentares de 4 de junho de 2023 na Guiné-Bissau, a coligação Plataforma Aliança Inclusiva (PAI) – Terra Ranka, chefiada pelo líder do PAIGC, Domingos Simões Pereira, teve maioria absoluta, ganhando 54 dos 102 lugares do Parlamento. Este resultado foi, acima de tudo, uma derrota do presidente Umaro Sissoco Embaló, cuja eleição, a 29 de dezembro de 2019, dera lugar a protestos da oposição e a uma controvérsia jurídica que Sissoco ultrapassou, assumindo-se como presidente de facto e do facto fazendo direito.

O principal partido apoiante do presidente, o Movimento Alternância Democrática (Madem-G15), teve 29 deputados. O Madem-G15 foi criado por 15 dissidentes do PAIGC, em 2018; é dirigido por Braima Camará e estava no governo de Nuno Nabiam com o PRS – Partido de Renovação Social.

Simões Pereira, apesar de ter maioria absoluta, adotou uma estratégia de alargamento da base parlamentar e social de apoio, convidando os dirigentes do PRS e do PTG – Partido dos Trabalhadores Guineenses, de Botche Candé, para integrar a coligação parlamentar, que assim ficou com 72 deputados em 102, isto é, com uma maioria alargada. Membros destes partidos foram também convidados para o governo.

Para completar a sua estratégia, Simões Pereira não avançou para a chefia do executivo, ficando presidente da Assembleia Nacional. Para a chefia do governo escolheu Geraldo Martins, engenheiro químico com uma licenciatura em Direito, que já tinha sido ministro das Finanças num anterior governo de Simões Pereira.

Esta estratégia teve por objetivo dissuadir o presidente da República, o grande derrotado das eleições, de tentar entravar a posse do novo governo.

O novo governo tem pela frente sérios problemas económicos e financeiros acumulados há anos, que afetam a população que agora lhe deu um largo voto de confiança. Os números são preocupantes, com um índice de pobreza que atinge 65% da população e uma grande taxa de desemprego dos jovens.

A castanha de caju continua a ser a maior exportação da Guiné-Bissau. Na campanha de 2021, as exportações foram de 236 mil toneladas e, na de 2022, que está a terminar, desceram para 195 mil. Nos últimos anos, o governo levantou obstáculos burocráticos à produção e comercialização de caju. Contra isto ergueram-se vozes como a de Mamadu Jamanca, presidente da Associação Nacional dos Importadores e Exportadores de Caju, que referiu a necessidade de “desburocratizar o acesso ao negócio em si”, entregando-o “à genuína lei do mercado livre da concorrência” e cumprindo as leis.

O novo governo de Geraldo Martins vai ter de enfrentar esse problema, mas, para já, a prioridade é aliviar o aumento do custo de vida através de uma redução dos custos dos produtos essenciais, como o arroz, cujo preço já desceu 22%, e há medidas também para baixar os combustíveis e os preços dos transportes públicos.

Outras medidas do novo executivo são no campo dos direitos humanos e da liberdade de expressão, que o governo de Sissoco-Nabiam limitou e controlou, subindo os valores dos alvarás para a rádio, televisão e jornais. Estas medidas, decretadas em outubro de 2022, mereceram o comentário de António Nhaga, bastonário da Ordem dos Jornalistas, numa entrevista à Deutsche Welle Africa: “O governo decretou a morte da imprensa guineense, da imprensa e dos jornalistas de forma geral.” Também o jurista Cabi Sanhá, depois de afirmar, em relação às mesmas medidas, que “nenhuma das rádios comunitárias e privadas conseguiriam pagar os valores exigidos”, condenando os guineenses a terem uma única televisão pública estatal. Isto porque, em outubro de 2022, apenas nove das 88 estações de rádio puderam pagar as licenças de emissão.

Tudo isto vinha já na sequência de ações violentas e de agressão a adversários políticos, como o rapto do advogado Sana Canté, dirigente do MCCI, e as declarações dos dirigentes da Ordem dos Advogados e da Liga Guineense dos Direitos Humanos, afirmando que a Guiné de Sissoco Embaló estava a tornar-se um “país altamente perigoso para os seus cidadãos”.

Numa medida destinada a mostrar a política do novo governo, o secretário de Estado da Comunicação Social, Muniro Conté, anunciou, a 15 de agosto, a reabertura da Rádio Capital FM, encerrada compulsivamente pelo governo de Nabiam. Trata-se de uma emissora muito popular, em que havia muitas críticas a Sissoco. Antes do encerramento, a rádio fora atacada e vandalizada por duas vezes, em julho de 2020 e em fevereiro de 2022, com jornalistas feridos e equipamentos destruídos.

É perante esta crónica de violências passadas que se tem de equacionar a etapa constitucional aberta pelas eleições de junho. Com os poderes do Parlamento e do governo bem firmes sob a direção de Simões Pereira, Sissoco Embaló não tem armas constitucionais para entravar a ação do governo. Mas, depois de uma certa acalmia, parece ter começado: por um lado, nomeou o anterior primeiro-ministro e outros membros do governo demitido para seus conselheiros, mantendo-lhes as prerrogativas de salário e mordomias anteriores, como se continuassem no executivo. Depois, exigiu que os ministros do novo governo venham a despacho com ele. A primeira exigência tem um custo acrescido para as finanças públicas, num país com uma população em dificuldades; a segunda é absurda.

Mas o futuro do país vai ser ditado pela evolução das relações entre o presidente e o governo, e Sissoco Embaló, a quem não se pode negar grande imaginação (basta ver a referência aos seus estudos universitários em Lisboa e Madrid no curriculum vitae), vai recorrer à guerrilha e à provocação institucionais.

Há mesmo quem levante a hipótese de se, perante a sucessão de golpes militares na região sem qualquer reação à vista, Sissoco não se sentiria tentado, se pudesse, a mover os militares para um levantamento.

Para isso é muito importante, preventivamente, a atitude externa da região e da União Europeia. Na região, os grandes apoiantes de Sissoco saíram do poder ou vão fazê-lo em breve: Muhammadu Buhari, da Nigéria, terminou o seu mandato a 8 de maio deste ano; e o presidente do Senegal, Macki Sall, já anunciou solenemente que não se recandidatará quando terminar o mandato, em fevereiro de 2024. Também a UE e os seus governos são importantes na conjuntura. E o governo português, que foi bastante solícito em aceitar as manobras práticas para o reconhecimento como presidente, também tem responsabilidades. Para já, sinal importante, António Costa, na ida para a cimeira de São Tomé, passou em Bissau para cumprimentar o seu homólogo, Geraldo Martins.