Vivemos num país surrealista, no país do triângulo que vai do Bairro Alto ao Lux e até Santos. Vivemos no país do faz-de-conta, em que uma certa elite habita uma bolha completamente alheada da realidade nacional. Numa semana em que continuam os graves problemas no SNS, em que grávidas não têm acesso aos hospitais e milhares de portugueses continuam sem consultas e cirurgias, o que discutem os comentadores? A decisão do Supremo Tribunal americano sobre o aborto.

Deveriam ter um pingo de vergonha em mostrar-se muito indignados com a decisão norte-americana enquanto, por cá, nunca se indignaram muito com as grávidas que perdem crianças nos hospitais por falta de assistência médica.

Mas são assim os nossos comentadores e influenciadores nas redes sociais. Incapazes de se indignarem quando o governo é de esquerda, mas furiosos quando há uma decisão de um tribunal estrangeiro só porque é de direita. Funcionam em rebanho e são capazes de estar em silêncio sobre os temas que afectam a nossa população, enquanto tentam exibir conhecimento sobre assuntos internacionais de que, na verdade, pouco sabem. Limitam-se a ser caixas de ressonância de meia dúzia de frases feitas que os primeiros comentadores escreveram e que eles reproduzem sem acrescentar nada que denote um pensamento próprio. São os comentadores Xerox, que se limitam a copiar ideias alheias.

Há esta obsessão de querer parecer moderninho e muito à frente. Há um tema do dia que é definido pelos dois ou três chefes do rebanho e os carneirinhos, subservientes, limitam-se a repetir as frases e a atacar quem delas discorda.

Esta semana, à boleia da decisão do Supremo Tribunal americano, o CEO da Prozis fez umas declarações bastante inapropriadas sobre o aborto. O senhor parece-me ser um fundamentalista católico, com aproximações ao Chega – tudo características que o tornam uma pessoa a evitar a todo o custo. No entanto, embora não concorde com o teor das suas declarações, respeito a sua liberdade de as expressar. Pensei que vivíamos numa democracia, em que a liberdade de expressão era respeitada. Mas, na bolha, não é assim. Imediatamente os generais do politicamente correcto sinalizaram essas declarações e comandaram o cardume de piranhas no ataque ao homem da Prozis, fornecendo-lhes os argumentos que deveriam utilizar.

A partir daí foi o campeonato de quem conseguia insultar mais o dito senhor. Ameaças, boicotes, influencers a demitirem-se, foi um fartote de ataques. É a velha história de um dizia mata e o outro dizia esfola. E apareceram todos os personagens que têm de aparecer nestes números, sob pena de levarem falta da polícia controladora das virtudes sociais.

Apareceram as candidatas a serem importantes na política sem nunca terem feito nada, os artistas engajados em busca de subsídios, os humoristas que se acham relevantes mas que, no mundo real, ninguém quer saber deles, os cronistas dos lugares-comuns em busca de aplausos e todos os wannabes de uma certa esquerda inconsequente. Fora da bolha, ninguém deu por nada e as vendas da Prozis lá continuarão, com uma pequena mossa rapidamente recuperada. Boicotes comandados pela bolha têm um efeito quase nulo fora do habitat natural desses pseudo-influenciadores. Entretanto, no mundo real, o país caminha para uma crise enorme. A inflação retira capacidade de compra aos mais necessitados, as pessoas desesperam nas listas de espera das consultas, o endividamento externo bate recordes, faltam professores e a maioria dos serviços do Estado estão em níveis mínimos de produtividade. Mas, para esta elite, estes problemas só seriam relevantes se o Governo fosse de direita. Como não é, vamos importar assuntos internacionais para a discussão, que sempre nos dá um ar mais cosmopolita. Conforme diria Leonard Cohen: “Everybody knows that the boat is leaking/ Everybody knows that the captain lied/ Everybody got this broken feeling/ Like their father or their dog just died/ Everybody talking to their pockets/ Everybody wants a box of chocolates